segunda-feira, maio 08, 2006

Memórias

Eram 3 da manhã. Os acontecimentos desse dia, tinham-me deixado anestesiada, sem saber como reagir. Tinha vontade de desatar num pranto, mas não! Tinha decidido que não iria chorar! Enquanto a enfermeira me explicava que eu podia ficar no quarto com o meu filho, mas que apenas dispunha de uma cadeira para passar a noite…que o tratamento a que ele iria ser sujeito, seria muito traumatizante…Enquanto ela falava, tudo me ecoava na mente. Tinha a estranha sensação, de que o meu corpo estava por ali mas a minha mente vagava. Tentava reconstituir o meu dia, na esperança de entender o que se havia passado.

O meu Diogo tinha tardado a acordar nessa manhã. Eu tinha amamentado o meu filho João já há muito, e o Diogo mantinha-se no seu quarto. Eu estava já inquieta e resolvi ir ver o que se passava com ele. Aproximei-me da cama e ele gemia baixinho, e ardia em febre. Assim que acendi a luz do quarto, estremeci ao verificar que ele estava francamente doente. Toda a face esquerda estava inchada e ele já nem conseguia abrir os olhos. Tentei colocá-lo de pé, mas ele tombava, por falta de equilíbrio. Chamei o meu marido, pegámos no João, e enquanto conduzíamos rumo à pediatra, eu telefonei-lhe a contar o estado em que o Diogo ia chegar. Ela preparou-me de imediato, para uma situação de emergência complicada. Quando chegámos, tivemos atendimento prioritário. Assim que a médica lhe fez a primeira avaliação detectou que o Diogo estava com rigidez da nuca. Remeteu-o para as Urgências hospitalares e assim que chegámos, já o hospital tinha sido avisado que iríamos chegar. Depois, tudo se passou de uma forma quase Surreal. Tiraram-me o Diogo dos braços e advertiram-me que lhe iriam fazer uma punção lombar, para determinar se havia meningite ou não. Antes dos resultados chegarem, ele teria que ir fazer uma T.A.C. ao Hospital de S. José. Quando dei conta, já estava dentro de uma ambulância que se deslocava a uma velocidade assombrosa, pelas ruas de Lisboa. O meu marido seguia-nos de carro. O Diogo, dizia algumas vezes “mamã, dói a cabeça mamã”, e pedia-me o pescoço. O Diogo nunca havia usado chucha, mas o meu pescoço era o seu aconchego. Ele buscava sempre o meu pescoço, quando queria dormir, ou quando simplesmente, queria afecto. Eu aproximei-me dele e puxei a sua mãozinha, a que não tinha soro, para o meu pescoço. Ele apenas sorriu. Eu fiquei ali a repetir-lhe que o amava, que tudo ia correr bem, que ele era a minha vida, que eu ia tomar conta dele…sei lá mais o quê. Chegámos ao hospital perto das 22 horas. Teríamos que esperar pelas 24 para que a TAC pudesse ser feita. O Diogo ardia em febre, apesar dos antipiréticos, e dos cuidados constantes do enfermeiro que nos acompanhava. Eu cantava para o acalmar. Beijava-o, e não me cansava de lhe dizer que o amava. Sentia-me impotente! Pela primeira vez na vida, senti como era não poder fazer nada! Pela primeira vez, senti o quanto era frágil, ao perceber que poderia ruir a qualquer momento, como um simples castelo de cartas.
Cerca da 1 da manhã, o Diogo fez a TAC e logo em seguida, foi visto por um oftalmologista do hospital, que emitiu um relatório reservado. Cerca das 2 da manhã, saímos de S. José, de retorno ao Hospital da Estefânia, onde ele iria receber ordem de internamento.

Naquele momento, eu estava a ser informada que o Diogo tinha Meningite viral, e uma celulite orbital à esquerda, que o tratamento iria ser moroso, doloroso e traumatizante…Eu olhei para a Enfermeira chefe e perguntei-lhe olhando-a nos olhos “Ele vai ficar bem?”. Ela com o saber de quem já se habituou àquelas perguntas respondeu apenas “as próximas 72 horas são determinantes. Mas certamente, que irá correr tudo bem. A mãe precisa de ter calma, e sobretudo, não transmitir ansiedade ao bebé!” O meu Diogo iria fazer 2 anos e meio a 23 de Maio. Estávamos a 16 de Maio, e de repente, tudo estava obscuramente remetido ao reinos dos “ses”, onde todas as impossibilidades eram possíveis, onde tudo podia acontecer.
Durante os 3 dias seguintes, eu só saí de ao pé do Diogo, para comer e amamentar o meu João. O meu marido tentava dividir-se entre o Hospital e o João. Ele procurava saber nos meus olhos, como é que eu me sentia e não se atrevia a perguntar-me nada, com medo que eu desabasse a qualquer instante. Ele sabia que devido à minha fragilidade, uma palavra era o bastante para me deitar por terra facilmente.

Ao fim de 5 dias, o Diogo, deu os primeiros sinais de melhoras. A febre baixou, ele chamou por mim, pediu-me o pescoço, e tinha fome, queria mamar! Chamei os médicos, para que o viesses ver. O inchaço da cara, começava a diminuir e o Diogo já se começava a abrir em sorrisos. Ele tinha fome, e esse era um bom sinal. Os médicos ficaram surpresos ao saberem que ele ainda mamava e porque o leite materno era facilmente digerível, deixaram que eu o amamentasse. Garantiram-me que o Diogo ficaria bem, e que lá para Julho, sairia do hospital. Eu estava ávida do meu filho!!! O Diogo mamou, teve todo o pescoço que quis, e antes de adormecer, perguntou pelo Pai. Enquanto o Diogo dormia, eu telefonei ao Pai. Contei-lhe como o menino estava melhor, que tinha perguntado por ele, que já sorria, que tinha mamado…enfim…o meu marido não cabia em si de contente. Passado 30 minutos estava ao pé de mim com o João e disse-me: “Agora vai…vai dormir, tomar um banho. Vai comer, hoje quem dorme cá sou eu! Volta logo para dares mama ao menino, mas dormes em casa, pode ser?”. Abracei o meu marido pela primeira vez desde o início destes acontecimentos, e acedi ao seu pedido. Fui olhar mais uma vez o Diogo. Era mesmo lindo o meu menino! Agora sim, ele tinha conseguido resistir, era definitivamente um lutador!

Peguei no Joãozinho, abracei-o e disse-lhe “Também te amo muito meu filho, mas o mano precisava muito de mim!”. O João estava com 5 meses, e o pai, como sempre tinha acontecido, havia tomado conta dele de uma forma exemplar. Agora tinha a certeza que tinha em definitivo, os meus 2 meninos de volta! Tomei rumo à casa dos meus pais. Lá amamentei o João, pedi-lhes que tomassem conta dele por essa noite e fui tomar um banho. Enquanto a água me invadia, os músculos relaxavam e a tensão ia desaparecendo, chorei! Quis lavar toda a dor contida e o sofrimento calado, naquela água que percorria o meu corpo. Sentei-me na banheira e enquanto a água caía, eu finalmente, deixava-me envolver num choro descontrolado e compulsivo. Já no meu quarto, chorei horas a fio, até que o cansaço se apoderou de mim e me fez adormecer.
No dia seguinte, acordei renovada. Fui para o hospital e com o meu marido, acompanhámos a recuperação do Diogo. O Diogo teve alta do hospital a 3 de Julho.
Cada vez que chega o mês de Maio, chegam-me as memórias destes meus dias negros. Penso, que o maior choro que alguma vez tive, foi o que eventualmente, me garantiu alguma sanidade, quando a minha vida quase deixou de fazer sentido. O choro, que exorcizou, os meus sentires de dor, foi o garante, que eu ficaria forte, para conseguir assistir às melhoras do Diogo e continuar a cuidar do João.

11 comentários:

Anónimo disse...

Imagino minha boa amiga os dias terriveis qoe tiveste que superar, descobrindo em ti forças que nunca imaginaste ter, sofrendo um tormento que nunca pensaste seres capaz de suportar e sentindo todo o peso do mundo que desabava sobre ti. Emocionei-me, minha amiga com este teu relato ainda hoje tão sentido e ainda hoje tão sofrido. Mas para além do sofrimento e da angustia, o teu relato revela uma mulher forte na sua fragilidade. Uma mulher determinada apesar da incerteza. Uma heroína na eminência da derrota. Aqueles sim, foram para ti os verdadeiros dias da MÃE. Só uma mãe consegue ter tanta força, tanta coragem, tanto amor. Como eu escrevi uma vez no comentário a um filme, " por amor a um filho, uma mãe é capaz de tudo. De matar ou de morrer.
Um beijo grande ao teu Diogo, ao teu herói, que gosta tanto de se aconchegar no pescoço da mãe. Um beijinho muito grande e muito, muito manso.

Anónimo disse...

Um relato comovente cuja dimensão da angústia só pode ser entendida por quem é pai/mãe. São também estes momentos, partilhados, que depois de superados fortalecem os laços de união de uma família.
Um grd abraço amiga Igara e beijinhos (mansos) ;)

GUIA DO APOSTADOR disse...

Grande exemplo de vida nos deixas aqui...é nestas alturas que se vê o arcaboiço das pessoas...um beijo com carinho para ti e uma boa semana!

Anónimo disse...

Que dizer?
Venceram juntos, isso importa, o teu pescoço é um grande porto de abrigo e tens ao teu lado alguem fantástico para partilhar esses filhos lindos. Felicidades.
Aquele beijo...

Anónimo disse...

Li com muita atenção tudo o que aqui escrevestes e uma coisa é certa és e serás sempre o porto de abrigo para os teus filhotes e não
há ninguém no mundo que nos queira tão bem como as nossas mães.
Um dia espero vir a ser mãe e nunca deixar de ser o porto deles.
Beijinhos

Anónimo disse...

Nem sempre as mães são porto de abrigo... às vezes são uma desilusão constante...

Coral disse...

Querida Igara .... ler-te fez-me recuar no tempo até a um momento da minha vida em que também senti a perda quase tocar-me. Para mim é indescritível o desvario que se sente.... mas também eu tive esse percurso de aguentar tudo na primeira fase e depois, já sózinha me desmascarar.Chorei até à exaustão...
São choros catárticos, que nos fazem indubitavelmente crescer ...
Um beijo enorme para ti e para o teu pequeno mas também grande lutador ...

Anónimo disse...

Espero nunca vir a sentir o que sentiste... Mas se alguma vez me acontecer, que eu consiga ter a tua força e o teu descernimento... também eu tenho um filho, o João de 1 ano, e não sei o que faria ou como reagiria numa situação dessas... pânico talvez, um vazio de forças, um tormento interior que não me deixaria pensar... não sei, sinseramente não sei... admiro todas as Mães que por esse mundo fora choram caladas a dor dos seus filhos enfermos... passam noites em claro à espera de um sinal de melhoras e só sossegam quando isso acontece... um pai é capaz disso também, mas eu acho que a Mãe quando dá à luz um filho cria com este uma ligação inquebrável, muito maior que o próprio amor, é como se fossem um só... uma Mãe é capaz de sentir a dor de um filho mesmo que este esteja longe... é quase como que uma coisa sobrenatural... uma Mãe é capaz de tudo por um filho... vai até ao infinito se for preciso só para que o seu filho seja feliz... dá tudo de si para ama-lo... ainda hoje não compreendo porque há mulheres que abandonam os seu filhos em condições inimagináveis... que os maltratam... que não os deixam apenas ser Crianças... enfim... neste mundo em que vivemos vemos de tudo, mas há que elogiar essas Mães estremosas, enaltece-las pelos seus feitos... A TODAS AS MÃES DESTE MUNDO UM BEIJO TERNO E QUENTE... e outro a ti igara, para que tenhas sempre força para estares ao pé dos teu filhos nas alturas em que eles mais precisarem, e para que eles vejam em ti um exemplo de vida e amor...

Anónimo disse...

Baila-me nos olhos uma lágrima fugidia pela intensidade da dor e pelo medo que vai neste texto, sensações tão familiares para quem ama intensamente um filho. Pelo pouco que vou conhecendo de ti, isto já foi há bastante tempo, mas é impressionante a intensidade que ainda consegues transmitir, a realidade daquilo que sentimos ao ler as tuas palavras...
Olho aqui para as palavras do pinochio e identifico-me com elas por sentir que, neste mundo maldito, é esse dez reis de gente que me dá alento, que me faz viver, que faz de mim um homem melhor. E eu sou o pai, não a mãe, mas sei onde é esse cantinho do pescoço que nos apetece cheirar e acarinhar quando o dia chega ao fim e o cansaço parece tomar conta de nós, eu sei onde é esse cantinho do meu pescoço onde ele se enrosca pedindo-me "Pai, dá-me carinhos"... Talvez porque, como disse uma amiga que passa pelo meu blog, eu seja o pai mais mãe que ela conhece...
Paro por aqui, amiga, porque as lágrimas teimam em saltar dos olhos e este não é o melhor lugar para isso. Deixo-te um beijo manso pela tua força e por esse coração maravilhoso de mulher e de mãe...
Mais logo a gente vê-se por aí...

Anónimo disse...

Neste mês de Maio choraste em companhia... à sériaaaaaaa! beijos grandes menina!

Anónimo disse...

Igara...
Que mais posso dizer depois de ler o que li?!... Este teu blog é o teu local de culto... aqui dás à estampa todas as angústias... todos os medos... todas as alegrias... que te preenchem enquanto Mulher de corpo inteiro... Que mais posso dizer que não tenha sido dito pelos teus amáveis comentadores?!... Corro o risco de usar, talvez, as mesmas palavras de sempre, gastas, os mesmos "chavões", velhos... Mas as palavras ainda não perderam o seu sentido, nem o mundo próximo que nos cerca deixou de precisar de as ouvir. Por isso as escrevo... Por isso as escreves...Imagens de impressões apreendidas pelos sentidos, retidas num album íntimo de sensações que são palavras, transformadas em ideias e atitudes por um mecanismo mental, cujo engenho desconheço. E assim escrevo... E dedico aquilo que ora escrevo a ti -IGARA - e ao Homem, irmão de todos os Homens, - que quebrou um dia os espelhos para não ver o seu rosto, que rasgou os pergaminhos para esquecer quem foi, que esmagou os preconceitos e se deixou ficar apenas, Homem, irmão dos Homens...
E a ti, minha Amiga, que crês no mundo dos Homens.
Por ti eu calo o que nem sei sentir
Por ti eu escondo a alegria de te viver
Por isso não te posso ainda
Nem jamais cantar
Como eu te queria
Minha Amiga
"Porque a Amizade canta. Não descreve..."